Todos os dias, milhares de pessoas se submetem ao deus criado pela humanidade: sua santidade o cientista. Seu santuário localiza-se nos edifícios dos modernos laboratórios, hospitais e universidades. Em todos os lugares, encontramos o especialista, guardião do conhecimento científico, o qual, pretensamente, tem resposta para todos os males que afligem a humanidade. São os pequenos profetas, representantes do saber canônico legitimado pela sociedade, autoridades instituídas que têm o poder da palavra. Como escreve Bourdieu:
“A especificidade do discurso de autoridade (curso, sermão etc.) reside no fato de que não basta que ele seja compreendido (em alguns casos, ele pode inclusive não ser compreendido sem perder seu poder), é preciso que ele seja reconhecidoenquanto tal para que possa exercer seu efeito próprio.” (1998: 91)
Os estudantes, por exemplo, ficam extasiados com a erudição do mestre. Em certas circunstâncias, quanto mais incompreensível for o discurso do professor mais ele parecerá inteligente. Em geral, passa despercebido o fato de que a instituição universitária legitima o discurso professoral: o docente não precisa saber, mas sim aparentar que sabe. Tempos atrás, havia uma novela onde o personagem, estilo professor-filósofo, discursava em solenidades e o público ficava boquiaberto com tanta sabedoria e erudição; na verdade, embromação.
Este tipo de autoridade se impõe devido à nossa cumplicidade. Quando procuramos o médico aceitamos de bom grado a sua autoridade: suas palavras expressam a verdade científica. Como nós, míseros ignorantes, podemos questioná-lo? Terá o aluno a ousadia de questionar o saber do professor? Ainda que este ou aquele professor seja inquirido neste ou naquele ponto, a sua autoridade estará resguarda pela posição que ocupa na instituição. Ou seja:
“A linguagem de autoridade governa sob a condição de contar com a colaboração daqueles a quem governa, ou seja, graças à assistência dos mecanismos sociais capazes de produzir tal cumplicidade, fundada por sua vez no desconhecimento, que constitui o princípio de toda e qualquer autoridade.” (Id.)
A imposição do saber canônico, da palavra autorizada, inclina-se à arrogância, manifesta ou camuflada (na forma da humildade demagógica). Isto ocorre na medida em que o portador do conhecimento científico não reconhece outrosaber. Há quem considere que a posse da sabedoria livresca e do conhecimento titulado e legitimado pela instituição concede status superior. Não fosse o mal e o sofrimento que causa – para si e para os outros –, a arrogância bem que poderia ser desconsiderada ou simplesmente debitada às compreensíveis fraquezas humanas.
Imagine-se no lugar da criança submetida à arrogância professoral, do estudante sacrificado no templo dos pequenos profetas, ávidos e autoritários [1] ; imagine-se nos corredores de um hospital, submetido à autoridade dos médicos e burocratas e sem outra opção a não ser esperar e esperar...
E quando, mesmo com toda a cumplicidade à autoridade instituída, nos vemos diante de uma situação desesperadora, para a qual a ciência não tem resposta? O filme O Óleo de Lorenzo ilustra bem esta situação. Trata-se da história de uma criança que tem uma doença rara e, pelos prognósticos dos doutos cientistas, não viverá muito. Logo nas primeiras cenas um fato se sobressai: o sofrimento ao qual o menino é submetido e as dificuldades da ciência em diagnosticar. A fala fria e científica do médico, ao informar o diagnóstico, contrasta com o desespero dos pais. A mãe pergunta se não há uma remota possibilidade de cura, se ele tem certeza. O doutor responde, secamente: “Absoluta”. Só resta a resignação.
Em Patch Adams, fica claro como se chega à objetividade científica traduzida em gestos e falas que mais se assemelham a autômatos. O filme relata a história de um homem com tendência suicida que, no hospício, descobre um sentido para a vida: ajudar o próximo. Nesta busca do outro, ele decide fazer o curso de medicina. Na faculdade, entra em choque com a burocracia e, principalmente, com a filosofia de ensino defendida pelo professor-reitor. O paciente se submete à autoridade do médico, o que atesta o seu poder. Como o poder causa dano, a solução apregoada pelo reitor para evitar ou minorar as conseqüências é a recusa dos sentimentos e a valorização absoluta da objetividade científica. Nesta perspectiva, a tarefa dos professores é desumanizar os futuros médicos, isto é, recusar-lhes o status de humanos (com suas paixões, sonhos, fraquezas e dilemas), e transformá-los em médicos. A relação deixa de ser uma relação entre humanos e passa a ser uma relação sujeito-objeto, do médico com a doença. Os doentes são desumanizados, anulados em sua identidade e transformados num número da ficha hospitalar, num caso a ser estudado, diagnosticado e tratado.
Eis como se forma um cientista desprovido de subjetividade – como se isto fosse possível! A propósito, seria a sisudez um aspecto inerente ao ato de fazer ciência? Observa-se nestes filmes como alguns indivíduos que representam o saber científico (médico, professor, pesquisador etc.) distanciam-se dos demais seres humanos e adotam um ar de gravidade – confrontado, em Patch Adams, pelo bom humor e o jeito peculiar de encarar a profissão. É interessante como este estilo influencia os estudantes: o aprender transforma-se em sinônimo de desprazer, competição e inveja (como se a cretinice e a chatice fosse condições para o trabalho intelectual). A prática de Patch Adams, coloca em xeque o método de ensinar-aprender tradicional. Não por acaso, o reitor defende-se dos questionamentos com um argumento tipicamente científico: “Nosso método é o resultado de séculos de experiência”.
O filme O Óleo de Lorenzo demonstra que, em sua arrogância, os guardiões do saber canônico não admitem concorrência: reflete a contradição entre o saber considerado científico e o saber não reconhecido no campus. Os pais de Lorenzo, na luta para salvar o filho, tornam-se autodidatas, rivalizando com os renomados doutos. As autoridades científicas relutam em aceitar os avanços obtidos nas pesquisas realizadas externamente ao seu controle.
Mas, a resistência não é apenas dos médicos: os demais pais, cujos filhos sofrem da mesma doença de Lorenzo, não aceitam que alguém fora da academia possa atingir o saber científico. Ou seja, negam legitimidade ao saber não-diplomado. “Querem ensinar os médicos”, acusa uma mãe. Em sua opinião, o desafio ao saber estabelecido é um ato arrogante. E ela tem certa razão. Com efeito, a palavra arrogante vem do latim arrogare, que significa apropriar-se de. E de fato, o que o pai de Lorenzo faz é, por meios próprios, apropriar-se do conhecimento científico.
Patch Adams também representa um desafio ao saber instituído, na medida em que questiona seus pressupostos e projeta uma experiência autogestionária, onde todos aprendem e ensinam mutuamente (a idéia de um hospital no qual os doentes e médicos aprendem uns com os outros e somam esforços no sentido de tornar a vida melhor).
Ambos os filmes não descartam o saber instituído. Não há contradição absoluta entre os tipos de saber: o autodidatismo do pai de Lorenzo se referencia no conhecimento científico acumulado e disperso; a crítica de Patch Adams se insere no contexto do campus. Num e noutro caso, não há a negação absoluta do saber científico, mas sim de uma determinada maneira de compreendê-lo e de agir. Tanto o pai de Lorenzo quanto Patch Adams são incorporados e assimilados pelo campo acadêmico.
Óleo de Lorenzo e Patch Adams, baseados em histórias reais, questionam a arrogância titulada e o intelectualismodesencantado do mundo: o saber cientificista, abstrato e sisudo, profundamente desvinculado do humano; um saber que não mergulha no mar da humanidade, um saber desumanizado.
O amor pelo filho e pelo próximo alimenta a paixão pelo conhecimento. “Com efeito, para o homem enquanto homem, nada tem valor a menos que ele possa fazê-lo com paixão”, afirma WEBER (1993: 25) O trabalho realizado com paixão inspira e realiza o homem; o contrário, exprime obrigação, opressão. O exemplo do pai de Lorenzo comprova que o diletantismo, como admite Weber, é positivo:
“No campo das ciências, a intuição do diletante pode ter significado tão grande quanto a do especialista e, por vezes maior. Devemos, aliás, muitas das hipóteses mais frutíferas e dos conhecimentos de maior alcance a diletantes. Estes não se distinguem dos especialistas (...) senão por ausência de segurança no método de trabalho e, amiudamente, em conseqüência, pela incapacidade de verificar, apreciar e explorar o significado da própria intuição”. (Id.: 26)
O saber confrontado pelas experiências relatadas nestes filmes vincula-se, via de regra, à vaidade – que, em defesa dos intelectuais, não é uma propriedade exclusiva do campus. Se todos somos vaidosos, em menor ou maior grau, o problema começa quando a vaidade se traduz em atos autoritários ou se erige em obstáculo às relações humanas (talvez, por isso, há quem prefira os animais).
O mais preocupante nisto tudo é a perda do sentido da vida e da percepção da sua finitude. Se levarmos em conta as sábias palavras em epígrafe e, quem sabe, nos tornemos mais humildes em relação às nossas pretensões intelectuais e tenhamos uma atitude mais crítica (quanto ao pretenso conhecimento científico) e mais flexível (em relação à sabedoria popular). Quem sabe, aprendamos a controlar a arrogância e nos convençamos de que os títulos acadêmicos não nos tornam essencialmente melhores do que os nossos semelhantes não-titulados.
[1] Ver: As dimensões da relação aprender-ensinar e “Estudo Errado”: Qual é a capital de Kubanacan? (Revista Espaço Acadêmico, nº 25, Junho de 2003).
ANTONIO OZAÍ DA SILVA
Fonte: http://www.espacoacademico.com.br/028/28pol.htm
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