Caiu na segunda feira de carnaval o aniversário do maior e mais injustiçado economista do século XX.Nasceu há 102 anos, em Constanta, na Romênia, o cérebro que , a partir de 1971, fez de tudo para que a profissão entendesse que o processo econômico é entrópico, e não mecânico: Nicholas Georgescu-Roegen (1906-1994).
Estava próximo da aposentadoria em Vanderbilt, onde lecionou de 1949 a 1976, quando bradou aos economistas que deixassem de ignorar a segunda lei da termodinâmica: a energia passa de forma irreversível e irrevogável da condição de disponível para a de não disponível.As atividades econômicas aceleram este processo ao transformarem energia concentrada(baixa entropia) em formas de calor, que de tão dissipadas são inutilizáveis(alta entropia).
Como qualquer outra espécie, principalmente animal, a humana só persiste graças à exploração dos elementos de baixa entropia que chama de recursos naturais. Para progredir teve que fazê-lo de forma cada vez mais intensiva. Durante o longo período em que só avançaram sistemas de produção agrosilvopastoris, já foram muitas as sociedades que colapsaram devido a falhas metabólicas no relacionamento com a natureza. E o processo entrópico passou a ser exacerbado com o crescimento econômico moderno, via extração de baixíssima entropia contida no carvão, petróleo e gás.
É praticamente certeza de que algum dia a humanidade voltará a explorar de maneira bem mais direta a energia solar. Mesmo assim não terá como evitar a dissipação dos materiais usados pelas atividades industriais, o que acabará por exigir a superação do próprio crescimento econômico. A partir daí, o desenvolvimento humano dependerá da retração econômica, ou decréscimo do produto, e não do seu crescimento. O contrário do sucedido a partir da descoberta e domínio do fogo, e particularmente ao longo da última dúzia de milênios, desde que a seleção de espécies para a produção de alimentos não cessou de artificializar a relação da humanidade com a natureza.
Tão incômoda reflexão teve que ser escondida. Até simples referências a Georgescu passaram a ser banidas a partir de 1976, quando o paradigmático manual pedagógico de Paul Samuelson “Economia” trouxe meia dúzia de linhas para avisar que o autor do tão celebrado livro “Analytical Economics” (HUP,1967) se embrenhara pela obscura Ecologia, disciplina que até aquele momento era tão suspeita pelos economistas quanto a quiromancia. Por três décadas, quase todos, ortodoxos ou não, de direita, de esquerda ou de centro, conspiraram para que as teses de Georgescu sequer fossem conhecidas. Principalmente devido ao seu caráter evolucionista.
Ironia da história, essas mesmas teses orientam o que hoje há de mais promissor na pesquisa econômica de fronteira. Um terço de século após sua condenação ao ostracismo, não há como fingir que Georgescu jamais existiu. A excomunhão vai ser revista, principalmente devido às crescentes evidências de aquecimento global. A ponto de já parecer mentira que suas idéias tenham suscitado grave celeuma no Encontro Anual de 1973 da American Economic Association, presidido por Kenneth J. Arrow. Passados 35 anos de tão sombrio episódio, e 14 de sua morte, a obra de Georgescu vem sendo regatada nos EUA, na Europa e no Japão, malgrado inevitável colisão com o paradigma que une todas as correntes: a visão do processo econômico como algo circular e isolado do ambiente.
“Assimilar o processo econômico a um modelo mecânico é admitir o mito segundo o qual a economia é um carrossel que de nenhuma maneira pode afetar o ambiente composto de matéria e energia. A conclusão é que não há necessidade de integrar o ambiente no modelo analítico do processo. E a oposição irredutível entre mecânica e termodinâmica vem do segundo princípio, a Lei da Entropia”, disse em 1973.
Para que o tão badalado desafio da “sustentabilidade” possa ser discutido com algum rigor, nada mais aconselhável do que as oito normas de seu sarcástico ”programa bioeconômico mínimo”, formulado em 1976.
Primeiro: banir totalmente não apenas a própria guerra, mas a produção de todo e qualquer instrumento que tenha essa finalidade.
Segundo: ajudar os países menos desenvolvidos a obter existência digna, mas em nada luxuosa, com a maior rapidez possível.
Terceiro: reduzir progressivamente a população mundial até um nível no qual uma agricultura sem petróleo baste à sua conveniente nutrição.
Quarto: evitar todo e qualquer desperdício de energia-- se necessário por drástica regulamentação—enquanto se espera que se viabilize a utilização direta de energia solar, ou que se consiga controlar a fusão termonuclear.
Quinto: curar a sede mórbida por bugigangas extravagantes, para que cesse a sua produção.
Sexto: acabar também com essa doença do espírito humano que é a moda, para que fabricantes se concentrem na durabilidade.
Sétimo: investir pesadamente na concepção de mercadorias que sejam as mais duráveis.
Oitavo: reduzir o tempo de trabalho e redescobrir a importância do lazer para uma existência digna.
O sarcasmo decorre da plena convicção de que tal programa jamais poderia ser adotado. Afinal, não resta dúvida de que a humanidade já tenha escolhido uma existência bem mais curta, embora fogosa, em vez de permanência longa, mas vegetativa, sem grandes eventos. “Deixemos outras espécies- as amebas, por exemplo- que não têm ambições espirituais, herdar o globo terrestre ainda abundantemente banhado pela luz solar”(1976)
A esmagadora maioria dos economistas brasileiros parece ainda morrer de medo que tais idéias venham à tona. Forte indício é que as obras de Georgescu nem existam em Português, apesar de ele ter dado decisiva contribuição ao advento de um dos principais programas de pós-graduação da área, o do IPE-USP. O que talvez possa começar a mudar com a excelente dissertação de mestrado que Andrei Cechin logo defenderá na mesma universidade. Mas em seu programa de Ciência Ambiental, claro.
José Eli da Veiga , professor titular do departamento de Economia da FEA/USP e autor de “A emergência socioambiental”(Ed Senac,2007),articulista do Valor Econômico as terças.
Jornal Valor Econômico, sexta feira e fim de semana, 8.9 e 10 de fevereiro de 2008, Caderno A, Pag 13.
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