Voz apaixonada e sonora de poeta-ambientalista no caótico cenário do mundo pós-moderno, Snyder sustenta suas convicções em tradições ancestrais, no estudo formal da filosofia, no trabalho físico e na reverência pelo mundo natural. Por meio da prática bio-regionalista, xamânica e zen budista, ele nos apresenta um modo diferente de se perceber a natureza, a nossa própria mente e a nossa posição na sociedade. Celebrando a dignidade do trabalho e a linha de transmissão do conhecimento, seus escritos nos convidam à reflexão sobre nossa posição em relação à vida do planeta e à descoberta dos ciclos da vida do lugar onde nos encontramos - uma reflexão universal profunda, atenta e humilde.
A percepção da conexão e interdependência entre todas as coisas - seres, pedras, lixo, estrelas - é um dos fundamentos da obra de Gary Snyder. Obra complexa, pela profundidade dos temas que explora e pela diversidade de alusões que suscita, mas ao mesmo tempo transparente e acessível, pelo modo direto e efetivo com que consegue articular os princípios de sua composição literária.
O pensamento de Snyder revela que os valores para o século XXI são outros, inclusive muito diferentes daqueles cultivados pela geração Beat, que se valeu de uma liberdade e mobilidade que a economia do pós-guerra tornou possíveis. Hoje o cenário sofreu mudanças, e nele o sentido de comunidade e de lugar aparecem com uma nova dimensão - uma posição radical contra o consumismo absurdo e a destruição ambiental que caracterizam o mundo atual. Assim, qualquer modelo para uma cultura verdadeiramente saudável deve começar com uma identidade pessoal e o compromisso com o lugar - que não é, enfatizemos, apenas o modelo rural de lugar, mas de qualquer lugar que tenha significado para um indivíduo. Para o poeta a consciência da vida regional é tão poderosa/importante numa cidade quanto no campo. Sentido significa responsabilidade e interação. Aceitação de uma doação responsável ao lugar, com espírito de cooperação para participar na prática de desenvolvimento da família comum - para um re-habitar.
No Brasil, a editora Azougue lançou a primeira antologia em português de Snyder. "Re-habitar" inclui 50 poemas e 8 ensaios, e tem tradução de Luci Collin (que também pode ser encontrado na livraria Cultura).
Dois poemas:
Canção do amanhã
Os states lentamente perderam seu mandato
da metade até o fim do século
nunca deram às montanhas e rios,
árvores e animais,
um voto.
todas as pessoas os repudiaram
mitos morrem;
até continentes são impermanentes
Turtle Island* retornou
meu amigo abriu fezes secas de coiote
retirou um dente de roedor
perfurou e pendurou
numa argola de ouro
na sua orelha.
Olhamos pro futuro com prazer
não precisamos de combustível fóssil
obtemos poder de nosso interior
crescemos fortes com menos.
Agarramos as ferramentas
e nos movemos no ritmo lado a lado
lampejos de lucidez e de conhecimento
olho no olho
sentados quietos como gatos ou pedras
tão completos e seguros
como o céu noturno azulado.
dóceis e inocentes como lobos
tão enganosos como um príncipe.
No trabalho e em nosso lugar:
a serviço
do mundo selvagem
da vida
da morte
dos seios da Mãe!
A velha Sra. Kawabata
roça as altas e espigosas ervas daninhas —
mais em duas horas
do que eu consigo roçar num dia.
duma montanha
de capim e cardo
ela separou cinco hastes poeirentas
de flores do campo azuis e irregulares
e as colocou na minha cozinha
num jarro.