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23 de nov. de 2008

O verdadeiro luxo

Não tem a ver com roupas de grife, mansões e diamantes. Muito menos é algo para poucos afortunados. Surpresa: o mapa dessa mina está mais próximo do que você imagina


por Marcia Bindo


Aquela poderia ser mais uma manhã como outra qualquer. Eis que o sujeito desce na estação do metrô. Vestindo jeans, camiseta e boné, encosta-se próximo à entrada, tira o violino da caixa e começa a tocar com entusiasmo para a multidão que passa por ali, bem na hora do rush matinal. Mesmo assim, durante os 45 minutos que tocou, foi praticamente ignorado pelos passantes. Ninguém sabia, mas o músico era Joshua Bell, um dos maiores violinistas do mundo, executando peças musicais consagradas num instrumento raríssimo, um Stradivarius de 1713, estimado em mais de 3 milhões de dólares. Alguns dias antes Bell havia tocado no Symphony Hall de Boston, onde os melhores lugares custam a bagatela de 1000 dólares.

A experiência, gravada em vídeo, mostra homens e mulheres de andar ligeiro, copo de café na mão, celular no ouvido, crachá balançando no pescoço, indiferentes ao som do violino. A iniciativa realizada pelo jornal The Washington Post era a de lançar um debate sobre valor, contexto e arte. A conclusão: estamos acostumados a dar valor às coisas quando estão num contexto. Bell era uma obra de arte sem moldura. Um artefato de luxo sem etiqueta de grife.

Esse é um exemplo daquelas tantas situações que acontecem em nossas vidas que são únicas, singulares, e a que não damos a menor bola porque não vêm com a etiqueta de seu preço. A boa notícia é que pela primeira vez na história temos a chance  eu, você e quem mais quiser de definir o que tem valor real para nós, independenteente de marcas, preços e grifes. Não é mais um luxo o que o mercado diz que você deve ter, sentir, vestir ou ser. O luxo se relativizou, cada indivíduo o percebe a seu modo. Quer ver?

Sabe quando você faz algo que lhe dá um prazer danado, mas que acontece aqui e ali, bem raramente, e que por isso mesmo traz uma sensação de felicidade que transborda só de pensar? Pois a experiência única, que evoca esse estado de espírito, é o tal luxo para chamar de seu. “Ele ganhou um conceito mais flexível, que se desvincula do valor das cifras dos produtos e se aproxima das experiências subjetivas, um luxo emocional”, afirma o psicanalista Jorge Forbes. Numa pesquisa rápida, descobri que, se para meu vizinho um luxo é chegar mais cedo do trabalho para cair na farra com os filhos, para a chefia é conseguir almoçar sossegado em casa e para a colega aqui ao lado é não ter hora para acordar  simplesmente um luxo!

Objetos de luz


Essa não é a primeira vez que o luxo deixa de ser sinônimo de vida abastada, riqueza, extravagância e outros frufrus. Ele é tão antigo quanto a própria história da humanidade e em sua origem estava ligado aos rituais que as sociedades primitivas faziam para suas divindades. Acreditavam que iriam comover os deuses com coisas que não eram costumeiras, e que através dessas oferendas, danças e comidas especiais conseguiriam a luz para se orientar. Esses objetos que extrapolavam o cotidiano, veja só, passaram a se chamar objetos de luz, objetos de luxo. “Antes de ser uma marca da civilização material, o luxo foi uma característica do ser humano em busca da transcendência, da sua não-animalidade”, diz o filósofo francês Gilles Lipovetsky, co-autor do livro O Luxo Eterno.

E foi assim até o fim da Idade Média. No início do Renascimento o luxo perde sua aura sagrada, ganhando ares materialistas. Surgem os objetos de luxo suntuosos e exclusivos para as cortes aristocratas. Com a revolução burguesa e o início da sociedade de consumo, os objetos de luxo servem para distinguir as classes sociais. Feitos para dizer: “eu tenho o que você não tem”. Um tipo de luxo que se acentuou na era industrial e serviu de estímulo para as empresas se desenvolverem com produtos cada vez melhores e mais sofisticados. Uma sociedade hierárquica, com padrões universais de comportamento. Então veio a recente globalização, que botou tudo de cabeça para baixo. E as pessoas ficaram mais autônomas para gerir sua vida a partir de valores pessoais. “Se hoje não existe mais um padrão de gostos, perde o sentido ter objetos de luxo para impressionar os outros”, diz Dario Caldas, da agência de tendências Observatório de Sinais.

Isso não significa que o luxo tradicional esteja em declínio, muito pelo contrário. Ainda povoa nosso imaginário e dita a vida de muitos que sonham com a trilogia champanhe-charuto-golfe. Os dados estão aí para comprovar: é um setor econômico mundial da ordem dos 400 bilhões de dólares por ano, um mercado em ascensão, que só no Brasil cresceu 32% no ano passado, segundo pesquisa do instituto GFK Indicator.

O que mudou é que, com esse conceito de luxo expandido, ele deixa de ser restrito aos ricos. E isso não é papo de auto-ajuda para os menos endinheirados. Fui tirar a prova com Carlos Ferreirinha, um dos maiores especialistas do segmento de luxo no Brasil. Ele explica que existe até um apelido para isso no mercado: o “novo luxo”. “O importante é que ele mantém a característica básica do luxo: aquilo que é raro, escasso, exclusivo, ou seja, tudo o que não é comum nem usual  mas agora não necessariamente material”, diz.

Taí o mapa da mina: o próprio indivíduo tornou-se a medida do luxo. Mas, cá entre nós, como descobrir esse novíssimo luxo? “Faça este exercício: anote tudo que tem alto valor emocional e que lhe é raro. Pode ser tomar um cafezinho num lugar que você adora, mas aonde não consegue ir sempre, sair do trabalho com o sol ainda raiando no céu, lagartear sem fazer absolutamente nada. Tudo o que é difícil de realizar com o estresse da vida moderna pode ser um luxo”, diz Ferreirinha. Eu não resisto e pergunto  e qual o seu maior luxo? Esperava ouvir carros, iates e quetais como resposta. “Sou aficionado por cinema e gostaria de ir pelo menos uma vez por semana, na sessão da tarde. Quando consigo pegar um cineminha, a experiência é única”, diz. Bem, se somos o mapa da mina, o tesouro é este: recuperar o luxo que nos eleva do ter para o ser, da aparência para a essência, trazendo de volta seu antigo valor, de sacralizar momentos, torná-los divinos.

E para você? O que é um luxo? Ou melhor, o que lhe é raro e especial? Selecionamos cinco segmentos do luxo tradicional, mas vistos pelo prisma desse novo luxo, para ampliar sua reflexão. E para ajudá-lo a viver a dolce vita.

Roupas de grife


O corpo sempre foi a vitrine do luxo. E os trajes funcionaram, no decorrer da história, para demarcar posições sociais. Tanto é que a origem da palavra investimento é correspondente ao termo italiano investito, isto é, o investimento de valores fazia-se nos vestidos, nos trajes da época. Mas hoje não é mais assim. Não há um tipo de roupa que faça a diferenciação social, e sim as marcas de roupas, com seus precinhos salgados a tiracolo.

As grandes marcas são o carro-chefe, ou melhor, a limusine do segmento de luxo. A palavra marca em inglês se escreve brand, e vem de brandon, que é o instrumento empregado para marcar o gado a ferro quente. “Acontece que, se antes as indumentárias marcavam os grupos sociais, como gado, esse comportamento mudou na contemporaneidade. Existe uma democratização da moda e ela não tem mais esse papel forte de distinção social. Hoje até a classe alta usa o que quiser”, diz Ferreirinha. Há um movimento de popularização das marcas de luxo, seja porque estas lançam cada vez mais artigos acessíveis (perfumes e acessórios) e fazem parcerias com magazines, seja pela famosa indústria de cópias falsificadas.

Segundo outro expert no assunto, Gabriel Pupo Nogueira, fundador do Taste, um portal na internet para o consumidor de alto padrão, a moda não tem mais todo esse requinte, mesmo para pessoas mais abastadas. “Um exemplo vem da pessoa mais rica do mundo: Bill Gates não usa ternos nem gravatas Armani, não faz a menor questão de transmitir glamour. Anda de calça jeans e camisa. É um comportamento mais informal, despojado ”, diz Gabriel.

Hoje a responsabilidade social está incluída no repertório das preciosidades. Trabalhos manuais feitos por artesãos e comunidades, ou ainda produtos que levam em conta a sustentabilidade, trazem um diferencial. “O feito a mão é valorizado pela exclusividade da pequena produção”, diz a professora Kathia Castilho, organizadora do livro O Novo Luxo. São tecidos pela criatividade da mão humana e não pela precisão da máquina, e suas tramas vêm com história.

Viagens cinco-estrelas


Se pensarmos em viagens de luxo, uma nuvem (plim) instantaneamente se forma acima de nossas cabeças, com imagens deliciosas de resorts glamourosos, em lugares exuberantes, acomodações espaçosas, atendimento VIP e banheiras debruçadas sobre o mar. Nada mal. Mas, no fim das contas, o que realmente faz com que uma viagem seja única? Claro que os requisitos descritos podem ajudar bastante, mas não são sufi cientes. “O que faz com que uma viagem fique na memória até o fim da vida são os momentos emocionantes que ela proporciona, e isso independe de seu valor comercial”, diz Edgar Werblowsky, que trabalha com ecoturismo há mais de 20 anos. “Acredito que o valor da vida será medido pelas emoções vividas, o que será uma revolução”, diz.

Edgar percebeu uma procura crescente do consumidor por experiências únicas. A partir dessa observação, criou há três anos a Imaginnare, uma agência de viagens de sonhos. Que vão de aventuras mais inóspitas, como passeios de balão e test-drive de carros de corrida, até as mais prosaicas, como observar passarinhos em alguma serra ou passar uma temporada numa fazenda rústica para vivenciar a vida no campo. Aliás, este é outro ponto: o esgotamento dos recursos naturais vai fazer com que mais pessoas voltem a atenção para curtir coisas simples como ar puro e água fresca. Simplesmente porque conhecer lugares espetaculares na natureza será uma experiência cada vez mais escassa.

Quando o ator paulistano Carlos Evelyn se casou, no início do ano, escolheu passar a lua-de-mel com Mariana na Itália. Não pelo lugar em si. É que seu pai e sua tia haviam feito há 40 anos uma viagem gastronômica memorável por lá, que tinha virado uma lenda familiar. Depois que seu pai morreu, Carlos achou um roteiro dessa viagem, com anotações sobre os restaurantes pelos quais passaram, descrições dos pratos que comeram e o que acharam da comida. Carlos decidiu fazer o mesmo estilo de viagem, e durante os passeios pelas cidadezinhas da Itália o casal também escreveu um diário gastronômico. “A viagem foi especial não só porque a Itália tem cidades lindas, ou porque era minha lua-de-mel e minha mulher estava grávida de cinco meses  mas também porque estava revivendo uma história do meu pai  num momento em que estava quase me tornando pai”, diz Carlos. Sem dúvida, uma viagem cinco-estrelas.

Cardápio sofisticado


Por falar em gastronomia, o que é um alimento sofisticado hoje? “Mais que restaurantes badalados carérrimos, com chefs renomados, pense nos produtos regionais, feitos de maneira artesanal, sem conservantes - estes sim, uma raridade”, diz a culinarista Cênia Salles, coordenadora do movimento Slow Food no Brasil. O princípio básico do movimento é trazer o prazer de volta à mesa, ao degustar com calma alimentos frescos, orgânicos, produzidos de forma que respeite o meio ambiente - como você pode notar, uma oposição ao fast food que se alastrou pelas cidades.

Dona de um dos primeiros empórios orgânicos em São Paulo, Cênia valoriza também aqueles pratos que trazem boas recordações. “Para mim um luxo é saborear a torta da tia Lourdes, a bala de coco da tia Dora, o pão-de-ló de laranja da minha mãe, o merengue da prima Ceci e a queijadinha da tia Alice. Essas receitas fazem parte da minha memória gustativa, e a cada abocanhada me transportam para uma história da minha vida”, diz. Ela abre a primeira página da agenda e mostra seu slogan: “Simplicidade é o máximo da sofisticação”, frase de Leonardo da Vinci. Então conclui: numa época em que comidas congeladas, com conservantes e industrializadas, ocupam as prateleiras dos supermercados, luxo mesmo é degustar uma comida caseira, com ingredientes saídos do jardim, feita por alguém especial.

Certa vez, quando perguntaram ao dono da maior rede de supermercados - e de uma das maiores fortunas - do país qual seu prato ou restaurante preferido, ele não apontou um prato de um chef aclamado, de um fino restaurante internacional. Abílio Diniz confessou seu prato premiado: um bom tostex de queijo minas com peito de peru e orégano, que ele mesmo prepara na cozinha, quando chega do trabalho. Quem diria?

Morada dos sonhos


“Quando você imagina a casa dos sonhos, a primeira pergunta que tem que fazer é: o que faz bem a minha alma? Pode ser uma vista deslumbrante, uma árvore no quintal, morar num prédio que tenha importância histórica, um espaço para desfrutar do sol, enfim, esse será o seu luxo”, diz José Eduardo Cazarin, fundador da Axpe, imobiliária de imóveis especiais. Não se trata de exibir um ambiente exterior de riqueza, mas sim de criar um espaço que se pareça conosco, um lugar personalizado. “No mais, o consumo ostentatório é de mau gosto, inoportuno, não tem cabimento  é cafona mesmo”, afirma Cazarin. E arremata: “O importante é que sua morada proporcione uma experiência sensorial de bem-estar”.

O arquiteto e urbanista paulista Paulo Mendes da Rocha vai além. Para ele, viver de maneira especial tem a ver com a relação que você tem com a cidade. Em tempos de casas muradas e condomínios fechados, um luxo é usufruir as qualidades que a cidade tem. Entender que a casa não é só a casa, mas também a cidade. “É ter na quadra da sua casa uma padaria ou um café agradável, poder passear na rua, morar perto do trabalho, dispor de transporte público. Retomar a essência da cidade, que é o convívio urbano. A grande segurança da cidade é ter suas ruas ocupadas. Assim são as mais belas cidades do mundo”, diz a arquiteta paulista Fernanda Barbara, ex-aluna de Paulo Mendes da Rocha, também defensora da cidade como casa.

Movimento exatamente contrário ao que propõem os lançamentos imobiliários de alto padrão das grandes cidades: condomínios que vêm com verdadeiros clubes, salão de beleza, bosque, mercadinho e, quem sabe, até uma padaria. Quase uma minicidade murada.

Jóias preciosas


São o ícone do luxo. Não foi à toa que Audrey Hepburn imortalizou-se no clássico filme Bonequinha de Luxo. Nele, sua personagem pobretona, mas cheia de classe, suspira ao tomar café da manhã em frente à joalheria Tiffany e sonha que um dia será tão rica que terá todas aquelas preciosidades, e para tanto procura magnatas para casar. Até encontrar a jóia mais preciosa no relacionamento com seu vizinho pé-rapado  com quem cria vínculos e acaba se apaixonando.

Pois é. Se o novo luxo é emocional, vale lembrar que os relacionamentos são como o ouro do mais puro quilate. Isso mesmo. Um estudo conduzido pelo Instituto de Educação da Universidade de Londres demonstrou que uma pessoa que ganha 3 mil reais e encontra com freqüência os amigos é tão feliz quanto outra que tem o salário dez vezes mais alto, mas sacrifica sua vida social. A pesquisa feita com 8 mil britânicos se propôs a colocar etiquetas de preços em amigos e parentes. “Os resultados mostraram claramente que um aumento no nível de envolvimento social equivale a muitas libras adicionais por ano em termos de satisfação de vida”, afirmou o autor da pesquisa, Nick Powdthavee, especialista em economia aplicada a temas de felicidade.

Demorou para o terapeuta corporal e professor de aikidô Jorge Mello descobrir essa pepita. Jorge trabalhou 18 anos num banco e, apesar de ter uma vida financeira satisfatória, só sobrava tempo para as relações profissionais. Até conhecer o Movimento de Simplicidade Voluntária, organização mundial que ensina a auto-observação como mecanismo para perceber se suas opções estão gerando realizações. Não deu outra. Trocou de profissão e, como terapeuta, não atende mais de cinco pacientes por dia, tem um círculo de amizades autênticas e coordena o Movimento Simplicidade Voluntária no Brasil. “Tenho menos sucesso e sou mais completo”, diz. “Vou duas vezes por mês à orquestra sinfônica e divido a vida com os amigos. Valorizo meu bem mais precioso: meu tempo”, e encerra a conversa para não se atrasar para um encontro.

Tempo. Talvez um luxo para a mulher que surgiu apressada na escada rolante daquela manhã no metrô de Washington, segurando a mão de seu filhinho de 3 anos. O menino aparece no vídeo virando a cabeça várias vezes, tentando olhar para o violinista, enquanto é puxado pela mãe. Queria parar um pouco para ouvir a música. Mas a mãe estava sem tempo.

Para saber mais


Livros:
• O Luxo, Jean Castarède, Barcarolla
• O Luxo Eterno,Gilles Lipovestky e Eliette Roux, Companhia das Letras
• O Novo Luxo, Kathia Castilho e Nízia Villaça (orgs.), Anhembi Morumbi
• A Felicidade Paradoxal Gilles Lipovestky, Companhia das Letras

 


Ficou curioso para assistir ao vídeo do violinista no metrô de Washington? 
Veja abaixo...

Fonte: Vida Simples (http://vidasimples.abril.uol.com.br/edicoes/060/01.shtml)
A partir da indicação no blog de Daniel Caixão.